FONTE: JOTA

Senado precisa corrigir distorção, criada por emenda na Câmara, para que produtos nocivos à saúde possam ser alvo de imposto seletivo

Saúde dados, reforma tributária
Crédito: Unsplash

Num evento sem precedentes em nosso período democrático, a Câmara dos Deputados aprovou a reforma tributária da PEC 45/2019. É preciso louvar os esforços de articulação da Câmara e do Ministério da Fazenda para chegar a esse resultado, reestruturando e dando maior racionalidade ao sistema tributário brasileiro.

As perspectivas para o crescimento econômico a médio e longo prazo são boas, segundo os mais diversos analistas. No entanto, é importante ir além da simplificação e debater também como podemos promover a saúde e reduzir as desigualdades com a reforma tributária.   

A ACT Promoção da Saúde apresentou, no início do ano, uma agenda para uma reforma tributária saudável com 4 propostas centrais, que se conectam com a diretriz de favorecer aquilo que é bom e saudável e desincentivar o que não nos faz bem: criação de imposto seletivo para produtos nocivos à saúde, vinculação desses recursos ao SUS, vedação de subsídios aos produtos alvo do imposto seletivo e estímulos fiscais aos alimentos saudáveis. O texto aprovado na Câmara avança em metade dessa agenda.  

Está prevista a instituição de um imposto seletivo, embora a definição dos produtos fique apenas para a lei complementar, que deve ser discutida no próximo ano. Criou-se também, de forma histórica, uma Cesta Básica Nacional de Alimentos com alíquota zero, além de já se ter garantido essa mesma alíquota para hortícolas, frutas e ovos. Ficaram ausentes da redação final a vinculação ao SUS e a proibição de incentivos a produtos nocivos à saúde.   

O debate agora no Senado promete ser bastante intenso e, a depender de para onde apontar, poderemos ter retrocessos na construção de um país mais saudável. As indústrias de produtos nocivos vêm criticando há bastante tempo o imposto seletivo, alegando ser demasiadamente abrangente. Farão de tudo no Senado para derrubá-lo ou qualificá-lo, afirmando que este ou aquele setor deve ser excetuado, como ultraprocessados e agrotóxicos.

Casos de negação da realidade são constantes. A indústria do tabaco, por exemplo, se opôs a diversas medidas de controle do tabagismo, ao longo da história, e sempre com argumentos de que aumentariam o contrabando e gerariam desemprego e, portanto, um caos na economia. Entre 2011 e 2016, o governo brasileiro adotou um aumento progressivo de impostos, que contribuiu para baixar o percentual de fumantes de 13,4% para 10,2%. Desde então, a medida está estagnada e o número de fumantes parou de cair. Para eliminar o mercado ilícito, são necessárias medidas integradas, como controle de fronteiras, revisão de penalidades e esforços diplomáticos com países vizinhos.   

No caso do álcool, a pesquisa mais recente lançada, o Covitel, Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia, destacou que 32,6% dos entrevistados entre 18 e 24 anos, faixa etária que apresentou a maior prevalência, relatam episódio de consumo abusivo de álcool (quatro doses ou mais para mulheres e cinco doses ou mais para homens em uma mesma ocasião) nos 30 dias antes da entrevista do inquérito. E já vemos movimentação das empresas no sentido de mostrarem preocupação com aumento de alíquota, alegando falsificação de produtos.  

Esperamos que os argumentos tecnicamente fundamentados prevaleçam no debate público e não os lobbies setoriais, pois as evidências no campo da saúde sobre os impactos desses produtos são enormes. Novamente, o caso do tabaco é emblemático: mesmo sendo uma referência internacional no controle do tabaco, o Brasil ainda tem gastos da ordem de R$ 50 bilhões/ano com o tratamento de doenças relacionadas ao cigarro. Se somarmos os gastos indiretos, como perda de produtividade, que afetam a economia, chega-se a R$ 92 bilhões, enquanto a arrecadação do setor não chega a R$ 13 bilhões. A conta não fecha. O custo social do produto deve estar embutido em seu preço final.   

No caso da alimentação, tema que já rendeu inúmeros debates na reforma tributária, destacamos que um estudo recente mostrou que os alimentos ultraprocessados são responsáveis por 57 mil mortes prematuras ao ano. Apenas as bebidas açucaradas custam ao SUS R$ 3 bilhões ao ano. O mundo já percebeu isso e hoje mais de 40 países tributam bebidas ou alimentos de forma mais forte. Na região das Américas, Chile, Colômbia, México, Panamá, Peru, além de alguns estados ou cidades nos Estados Unidos, adotam tributos para bebidas ultraprocessadas. Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Noruega, Portugal e Reino Unido são alguns exemplos europeus.  

A disputa sobre o imposto seletivo já teve consequências. A versão final do texto da reforma, apresentada poucas horas antes da votação, incluiu uma emenda, sem qualquer debate ou visibilidade, que determina que produtos contemplados com alíquotas reduzidas não poderão ser alvo do imposto seletivo. Assim, produtos agropecuários, insumos agropecuários e alimentos destinados ao consumo humano (lei complementar deverá detalhar melhor produtos) não poderão ser sobretaxados via seletivo.   

De forma muito sagaz, inverteu-se, assim, a lógica que propusemos, de que produtos alvo do seletivo não poderiam receber benefícios. Em tese, faz sentido que produtos e/ou setores extremamente relevantes para a sociedade sejam beneficiados com alíquotas reduzidas e, logo, não possam ser sobretaxados. Ocorre que, na prática, foi uma estratégia encontrada pela indústria para escapar do imposto seletivo. Assim, a depender de como ficará a regulamentação, alimentos ultraprocessados, comprovadamente nocivos à saúde, ou agrotóxicos não poderão ser desincentivados por uma tributação majorada do seletivo.   

É preciso corrigir a distorção estabelecida e manter a proposta do seletivo como está, fortalecendo a ideia-chave de que o Estado brasileiro deve incentivar o que faz bem e desincentivar o que faz mal à população. O Senado tem diante de si a oportunidade de reafirmar seu compromisso com a promoção da saúde, direcionando a reforma tributária para que seja um instrumento para a construção de um Brasil mais saudável.  

MARCELLO FRAGANO BAIRD – Coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde
THIAGO BARRETO – Secretário-executivo da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva)

Categorias: SINFACOPE

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